segunda-feira, 6 de julho de 2009

Três prestações

Acordou cismado com a vida e com um leve comichão na garganta. Desprendeu-se dos lençois cansado de dormir e necessitado de cama. É aquela incongruência de sempre. Levantou-se, olhou-se e cansado fez a barba que não suportava mais fazer. Esticou-se um pouco mais, sorveu um pouco mais do café de sua senhora e, sem uma única palavra, saiu.


Sacudiu-se como um cachorro a desprender-se das pulgas em cada curva. Preso aos balaústres*, numa freada repentina a marmita tornou pelo chão e, vendo-se completamente desnudo, abandonou o coletivo sem recuperar os poucos talheres que tinha.


Fez o longo caminho a pé, chutando pedras e olhando casais apaixonados que se desfaziam de um frugal café numa paixão matutina. Não se lembrava mais o que era o desjejum, tão pouco o beijo adolescente de sabor cafeinado. Tudo era velho e embotado. Sonhos pueris, tentativas frustradas, corrida da patrulha, noites de farra... tudo isso lhe tocava quando, etílico, voltava pra casa.


O caminho durara mais que o esperado e mais um dia teria que conversar com o gerente. Sem contar os quatro reais que teria que dar na refeição perdida. Chegou, colocou a gravata postiça, rendeu o colega que o esperava com cara amarrada e começou seu cotidiano de farda. "Bom dia senhor, seu nome?" "... sim, sim, Lucas na recepção. Pode subir? tudo bem." "bom dia, seu nome?".


Basicamente seu ofício era a cordialidade, tão típica nos brasileiros sofridos. De quando em vez engolia a pressa de algumas pessoas que usavam gravatas de verdade, com nó e colarinho engomado. Era preciso manter a cordialidade subserviente: "sim senhor, um momento".


A vida nem sempre lhe era ruim. Tinha orgulho de ver o mais menor, como dizia ele, jogando bola. Cria que com um pouco de esforço e sorte, o mais menor poderia se tornar um grande jogador. No começo é claro, na segunda divisão, quem sabe até no banco, mas aos poucos vai se crescendo e melhorando a vida. Podia quem sabe até receber uma proposta para jogar fora. Se isso acontecesse, certamente sua vida mudaria por completo. Deixaria a gravata postiça para abrir as portas de seus vizinhos incrédulos e todos os finais de semana ofereceria cervejada com conhaque em casa para assistir aos jogos. Por enquanto era só um menino de sete anos com um peso bastante pesado, um sonho de categoria, mas tudo por enquanto.


Era natural essa rotina de não pensar em nada. Era preciso ver a vida passar e esperar em cada mês o ordenado. Esse sim era o dia salvador. Tudo estava encomendado: em vinte e quatro prestações, tudo era possível e os prazeres instantâneos se arrolava até que não houvesse mais prazer algum.. somente prestações que nunca mais terminavam. "falta apenas treis. Despois vou guardar pra subir a escada lá em casa", dizia aos amigos com a boca cheia de arroz e carne cozida com batata.


Um segundo depois, recebera a ligação no trabalho. Era a vizinha. "manuel, pelo amor de Deus manuel, volta pra casa. A ruth caiu." Atônito ainda tentando entender o que por ventura teria acontecido, ele inquiriu, mai joana, caiu como? Aflita ela respondeu, "foi logo que eu cheguei, num vi.. só ouvi os grito do seu menor, corre manuel".


Ele olhou em volta, olhou nos olhos de cada um de seus colegas, que, com os garfos em punho olhavam para ele curioso e disse: A ruth caiu, vou ter que ir para lá, alguém pode me render e ficar com meu cartão pra registrar o ponto as cinco?. Antônio, amigo pelo qual mais guardava admiração e sinceridade, anuiu o pedido e, deixando a gravata postiça no vestiário, correu para casa com sua pequena bolsa.


Ruth, sua esposa, na ocasião, vinha sentindo crises de labirintite. Sentia-se gratuitamente tonta e precisava sentar-se para recobrar o fôlego. Ao subir uma escada de madeira para subir à laje, que há três anos ainda estava por terminar, a fim de estender as roupas, sofreu uma crise e caiu do quinto degrau.


Ao chegar, uma hora depois, Manuel não tinha mais o que fazer. O destino se encarregara de levar sua Ruth para o infinito. Ele olhou em volta, respirou fundo, acompanhou com os olhos as marcas rubras do chão e num suspirou disse: Mas jesuis, só faltava treis prestação!

* - Ferro para segurar do ônibus

5 comentários:

  1. má, rapaiz. só faltava mais treis minutos ate eu ir pra cama. ainda bem que li esse teu texto genial!

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  2. Sabe o que me lembrou? Construção do Chico!
    É Jão, gostei da simplicidade.
    bjs
    lu

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  3. Ouvi uma música hoje cedo que faz lembrar muito seu texto. Não sei de quem era, mas dizia entre outras coisas, que na vida a gente se empenhava pra ter diploma de bem comportado e fazer exatamente o ordenado, e terminava: tá tudo bem, tudo legal! e por aí as coisas vão..
    bjs

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. O prezado voce tem afinidade com a coisa, gostei do texto, parabéns....


    Joaquim de castro Lima

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Não me procure se não for importante